Nevoeiro

Nuno Martins Fotografia - All Rights Reserved

Acordo para um dia de nevoeiro cerrado.
As janelas parecem mostrar um imenso nada. 
Sei que, apesar de invisível, está tudo lá: o sol, as árvores, os pássaros, a cidade, o mundo. 
E as pessoas - nas suas rotinas matinais, a partir para as suas vidas. Metem-se no carro e lá vão elas. A vida não pára quando há nevoeiro, e elas lá vão. Confiam que também a estrada continua lá, apesar de não a verem. Confiam que os levará ao seu destino, talvez hoje mais devagar que noutros dias. 

A vida não pára, nem mesmo quando o nevoeiro é tão denso que não se vislumbra um palmo adiante.
É preciso confiar. Está tudo lá. Está tudo no seu lugar.






Fermentação



Quando era miúda adorava ver a minha avó a fazer as filhoses para o Natal.
Depois de amassar vigorosamente a massa, ela colocava-a num grande tabuleiro de barro para fermentar e cobria-a com um pano. Nada de tampas, apenas um leve pano.

Ela sabia que era preciso dar tempo a que a massa fermentasse, e ía pacientemente observando a massa a crescer, levantando só uma pontinha do pano, até que ela extravasasse os limites do tabuleiro.
Quando chegava a altura de fritar, ela também sabia que não devia colocar muita massa na fritadeira ao mesmo tempo. Duas ou três porções de cada vez, para as poder vigiar, para que cada uma tivesse o espaço necessário e não se colassem umas nas outras. 
Polvilhadas depois com açúcar faziam as delícias de qualquer um que as provasse. Não tenho dúvidas que o ingrediente secreto que as tornava inesquecíveis era o amor com que as fazia.
Escusado será dizer que assim que a minha avó começava a preparar a massa ficava rodeada de miúdos em pulgas por começar a comer. Lembro-me que a ansiedade de nos lambuzarmos com aquela maravilha nos levava a pressioná-la a cada passo do moroso (para nós interminável) processo: "Já está bem amassado, avó! Ainda não fermentou?? Vá lá avó, de certeza que já está bom para fritar! Põe mais na fritadeira, avó! De certeza que cabem mais! Já arrefeceram?"
Ela sentia a pressão dos gulosos impacientes. E sorria. E não fazia caso.



Olho para a humanidade assim: massa a fermentar.
E estamos (genericamente falando) numa altura muito propícia à fermentação.
Observo (em mim e nos outros) a massa a borbulhar, cada vez mais mudanças a acontecer, mais gente com a predisposição para essas mudanças, os olhos incendiados com a vontade de expandir horizontes, de questionar, de rasgar velhas crenças e hábitos.
E vejo muita pressa - incluindo a minha - em começar a comer as filhoses. 

Temos muito por onde crescer, mas a nossa necessidade de definição e afirmação leva-nos a sabotar e apressar o processo.

Vivemos na mentalidade do fazer.
E, entendendo a importância da acção, da definição de prazos e objectivos, creio que descuramos demasiado o período de fermentação.
Na vida tudo tem o seu ritmo, e tão importante quanto o movimento é a quietude; o espaço dado à respiração. Basta que penses na importância das pausas numa dança, numa melodia, num discurso, numa anedota - antes da punch line. 

Quando nos impomos prazos muito rígidos e nos obrigamos a apressar-nos para os concretizar, duas coisas podem acontecer: pomos a massa a fritar antes de tempo e estragam-se as filhoses, e não observamos a magia que é a massa a crescer.
Mal sentimos a massa a crescer um pouco já queremos começar a fazer filhoses em série. Uma e outra e outra, até termos a fritadeira tão cheia de porções de massa que já nem sabemos qual temos de virar, qual é a primeira que tem de sair, correndo o risco de se colarem umas às outras, transformando-se numa gigantesca filhós sem ponta por onde se lhe pegue. 
Isto acontece porque entendemos a fermentação como "não fazer nada", uma perda de tempo. Já amassámos a massa, sabemos que a queremos fritar, este momento entre as duas acções em que nada parece estar a acontecer gera muita ansiedade: não temos nada para fazer além de esperar e ir observando a massa a crescer, sendo que, como ela está coberta com um pano, na maior parte do tempo nem sequer vemos nada!
Esquecemo-nos que essa acção que se passa por baixo do pano que, sendo invisível, sentimos como inacção, é parte fundamental do processo. Se soubermos dar tempo ao tempo, essa mudança será bem visível, quando compararmos a massa fermentada com a que colocámos a fermentar.  
Esquecemo-nos também que enquanto a massa fermenta, podemos afastar-nos e são inúmeras as coisas que podemos fazer que em nada dependem das filhoses, incluindo não fazer absolutamente nada e oferecer-nos um momento de paz por entre a azáfama. 
Bom, se queremos comer as filhoses pelo Natal, é importante aplicarmo-nos para que fiquem prontas no Natal e não na Páscoa... 
Mas é igualmente importante, depois de fazermos a nossa parte, deixar que a massa que resultou do nosso trabalho faça também a sua, aceitando que ela já não está nas nossas mãos, não depende de nós quando ficará pronta, e que podemos ter de aguardar uma hora, duas, ou até à manhã seguinte. Claro que podemos sempre tentar acelerar o processo, pô-la em cima do aquecedor ou qualquer outra coisa... mas, na verdade, a massa ficará pronta... quando ficar. 
Como saber que estamos no tempo certo de agir? Como saber se a massa já fermentou? Se já fritou? Provavelmente a experiência ajudará a sabê-lo instintivamente. Entretanto, em caso de dúvida... vamos testando. Nada nos impede de por um pouco de massa na fritadeira e ver o que acontece.
Ceder a pressões (internas ou externas) conduz a precipitações. Não significa que corra sempre tudo bem se não nos apressarmos; isso não garante nada além da possibilidade de agirmos conscientes das nossas escolhas e aceitarmos as consequências como resultado da nossa acção. E isso, não sendo nada, é tudo. 


O mesmo se passa com objectivos muito estanques: se cobrirmos a massa com uma tampa em vez de um pano, estamos a limitar-lhe a possibilidade de crescimento ao que previamente estabelecemos, a impedi-la de se expandir livremente e, quem sabe, surpreender-nos. 

Finalmente, é ainda crucial estar aberto à possibilidade de não haver filhoses. 
Convém lembrar que neste processo, como em tudo, apenas uma (diria pequena) parte está realmente sob o nosso controle. 
É tão possível que a coisa corra bem como o é que ela corra mal, por motivos que nos transcendem, e apesar de todo o nosso empenho. 
Enquanto o seu corpo lhe permitiu, a minha avó cozinhava como ninguém. E nem todo o seu amor e as décadas de experiência impediram que, um certo Natal, as várias tentativas de filhoses acabassem em massa crua no lixo. 
Se ficarmos fixados no facto de não haver filhoses, não vamos desfrutar dos sonhos, azevias e restantes iguarias que possam estar em cima da mesa.

O amor é ingrediente fundamental em tudo o que fazemos. Até nas pausas.
A flexibilidade é vital.




Se quiseres, relaciona esta metáfora com a tua vida:

Em que fase estás, em cada área da tua vida?
Estás a garantir que amassas com amor?
Estás a respeitar o tempo de fermentação?
Enquanto esperas que uma área fermente, estás a dedicar-te a outra?
Quantas filhoses estás a tentar fritar ao mesmo tempo? Como está a correr?...
Estás a dar-lhes tempo para arrefecer e solidificar?

Provavelmente em alguma(s) área(s) da tua vida estás agora na fase da degustação.
Estás a exultar cada dentada?

Todas as fases têm um gostinho muito especial. Saboreia-os! 







Aceitando as marés

Nuno Martins Fotografia - All Rights Reserved

Todos os dias o mar beija a rocha, e nesse toque suave ela vai-se moldando, lentamente, rendida às suas gentis carícias. 
Aos olhos que a vêem todos os dias, as ínfimas mudanças são imperceptíveis. Será talvez com surpresa que, um dia, esses olhos se apercebem que a paisagem mudou.
Mas o mar é feito de marés, o tempo é feito de estações e, um dia, irremediavelmente o inverno chega, as águas agitam-se e batem furiosamente na rocha.
Vistos de fora aqueles embates parecem violentos - o mar tomado de toda a sua força é imparável, não há barreiras que o Homem construa que o possam travar ou conter. Se a rocha falasse, talvez perguntasse ao mar porque a agredia daquela forma, o que tinha ela feito para merecer semelhante castigo. Talvez lhe gritasse que ele é injusto e, não tendo como esconder-se ou fugir à inevitabilidade da tareia, talvez se sentisse uma vítima das suas injustiças.
No entanto, quando o mar acalma - e o mar sempre acalma - a rocha apercebe-se que ele não a destruiu, pelo contrário: o mar entrou pela rocha adentro, limpou-a, poliu-a, despiu-a das velhas camadas exteriores cobertas de musgo e lodo, revelando uma nova "pele", mais pura, cada vez mais próxima do seu centro.
Naquele curto espaço de tempo, a sua paisagem mudou acentuadamente. Seriam precisos muitos anos até chegar a esta rocha renovada se o mar a beijasse sempre docemente.
Gosto de pensar que é por isso que se chamam marés "vivas" - porque é quando as águas se agitam que as mudanças profundas ocorrem.
O mar é feito de marés, de tempestades e acalmias que vêm quando vêm e duram o tempo que duram, não há nada a fazer... melhor será aceitá-las, respeitá-las, e recebê-las, tal como a rocha, deixando-as fazer a sua parte e observando as alterações na paisagem.
E agradecer-lhes - sempre.




Mundo recheado de amor e tolerância envolvido em creme de respeito e aceitação, servido com molho de compaixão e acompanhado de partilhas salteadas e alegrias cozidas a vapor de gratidão



"Doce de limão com frutos silvestres." - Pareceu-lhe bom.
Alice tinha dois lagos cristalinos no lugar dos olhos e um arco-íris nos lábios. Aos onze anos gostava de desenhar, cantar e cozinhar. Adorava cozinhar.
Ingredientes ao lume, bastante açúcar e mexer. Mexer sempre - é fundamental.
A campainha soou e quase em simultâneo a voz do irmão:
- Alice, vai à porta!
- Mas estou a cozinhar...
- Paciência. É a tua obrigação. Vai à porta.
Era verdade. Desde que fizera 10 anos atender a campainha passara a ser uma das suas tarefa em casa, e Alice gostava de cumprir ciosamente com as suas responsabilidades. E esta era uma de que gostava particularmente, fazia-a sentir-se crescida e orgulhosa pela confiança dos pais. Numa corrida chegou à porta, espreitou - ninguém.
- Raios! - voltou a correr para junto da panela. - Não pegou. Ufa! - levou a colher à boca, e... - Salgado?! Como pode estar salgado?? - De imediato acrescentou um punhado de açúcar. Continuou a mexer. 
Não tardou que a campainha novamente soasse, e a história repetiu-se: corrida para lá, ninguém, corrida para cá, não se pegou... salgado!
À terceira vez que o irmão a mandou abrir a porta retorquiu-lhe, já irritada:
- Mas não está lá ninguém! 
- Como sabes, se ainda não foste ver? Desta vez pode estar. Pode até ser alguém com uma surpresa para ti... um presente, quem sabe?
Não queria afastar-se da panela. Temia que o doce se queimasse e, pior que isso, sempre que parava de o mexer ficava estranhamente salgado. Dividia-se entre a obrigação de ir à porta e aquela voz que lhe dizia para não tirar os olhos da panela. Mas a possibilidade da surpresa tornou-se irresistível, e decidiu ir o mais rápido que conseguisse. Voou como uma flecha - continuava a não haver ninguém à porta - e foi tão rápida que quando voltou ainda chegou a tempo de encontrar o seu irmão na cozinha... a deitar sal na panela.
Ficou tão furiosa com o irmão, e tão zangada consigo mesma por se ter deixado enganar, que a raiva borbulhou por ela acima, transformando os seus lagos em cascatas que jorraram para dentro da panela.
Agora, com o sal das suas lágrimas a juntar-se ao sal do irmão, o doce estava mais salgado que nunca. Nada a fazer, estava arruinado.




Imagina o mundo, a tua vida, as tuas relações, como algo que cozinhas.

Aquilo que obtens é o resultado do que colocas na panela. Se queres um prato salgado pões sal, se queres um prato doce pões açúcar. Se queres acção tens de agir, se queres silêncio, tens de silenciar. Se queres uma relação de confiança e respeito, tens de dar confiança e respeito. Se durante uma discussão queres calma e entendimento, tens de contribuir com calma e entendimento. Se queres um mundo amoroso tens de dar amor ao mundo. Parece óbvio, não é?...

O grande desafio é que ninguém cozinha sozinho... E não controlas o que os outros cozinheiros colocam na panela. Quanto maior a panela, mais os ingredientes, temperos e cozinheiros envolvidos... maior te parece o desafio!
Na verdade não é, o que tens a fazer é o mesmo quer estejas a cozinhar a dois, a dez, a dez milhões ou sete biliões (ou seja, quer estejas a cozinhar a tua relação amorosa, com a família, com a empresa, com o país, com a humanidade, com todos os seres vivos ou contigo mesmo): focares-te sempre no resultado que pretendes, seja em que situação for.
É simples: independentemente do número de cozinheiros e dos temperos que eles coloquem na panela, aquilo que queres obter como resultado final é o que tens de continuar a por na panela.

Culpar os outros cozinheiros desvia-te do teu foco. Repara como a Alice, enquanto não atribuiu a culpa ao irmão, se limitava a corrigir o tempero... Não estava como ela queria, simplesmente tinha de corrigir. No momento em que houve um culpado veio a raiva (por ele e por si mesma), ela desconectou-se do seu objectivo e ficou incapaz de continuar a corrigir amorosa e pacientemente o seu doce. Repara também que, bem vistas as coisas, não foi a interferência do irmão que arruinou o doce, mas a reacção da Alice a essa interferência, que a levou a desistir de acrescentar açúcar e a reforçar o sal do irmão com as suas lágrimas.

Em vez de os culpares, agradece-lhes. São os seus desafios que te permitem teres as oportunidades que precisas para aprender a temperar, corrigir, lidar com os imprevistos de qualquer cozinha. São eles que te ajudam a tornares-te um cozinheiro de mão cheia.

O que colocas na panela afecta todo o conteúdo. Dentro da panela tudo se mistura. Tu sabes que é assim. Não podes escolher direccionar o sal especificamente a um ingrediente e o açúcar a outro; todos os ingrediente serão afectados pelo que puseres na panela (ainda que possam reagir aos temperos de formas diferentes). Se queres um mundo amoroso, não faz sentido dares amor por um lado e ódio por outro, pois não? Mesmo que a tua intenção seja, por exemplo, dares amor aos que sofrem e ódio aos seus agressores lembra-te que, dentro da panela, inevitavelmente tudo se mistura... O resultado final é por isso reflexo de tudo o que pões na panela.

Equilíbrio - Se não consegues retirar o que está em excesso, acrescenta o que está em falta. Não consegues retirar o sal que os outros (ou tu mesmo) colocam... mas podes equilibrar com açúcar. Temperar não é mais que equilibrar os sabores.
Se não consegues retirar o ódio, reforça a dose de amor. A cura de qualquer veneno é o seu antídoto. Querer curar ódio com mais ódio, parar gritos com mais gritos, resolver agressão com agressão, é tão absurdo como acrescentar sal a comida que já está salgada.

Se não consegues dar o que está em falta... podes não dar nada. Lembras-te quando a Alice encontrou o irmão na cozinha? Ficou irritada, revoltada com o irmão, decepcionada com o resultado. Talvez tenha perdido a vontade de continuar a tentar salvar o doce. Talvez tenha esgotado o açúcar e não tenha mais para dar naquele momento. Às vezes acontece... acontece-nos a todos esgotar momentaneamente o açúcar. A questão é: o doce estava um bocadinho salgado pelas diabruras do irmão... mas foram as lágrimas dela que o deixaram intragável. Se o que temos para dar só vai piorar... podemos escolher não dar nada. Pode ser preferível afastarmo-nos da panela e voltarmos quando tivermos novamente condições para dar o que faz falta, e o que queremos no fundo dar. Não se faz o doce (naquele dia) mas também não se dá cabo dele.

Vigiar o que está ao lume é fundamental. Nem sempre conseguimos manter os olhos postos na panela, é verdade. São muitas as campainhas a distrair-nos, a desviar-nos a atenção do que é realmente importante observar.
Podemos começar por estar mais atentos ao que nos faz tirar a atenção da panela... A quem permito que me distraia? Quais as aliciantes ilusões a que eu não resisto? Quais são as obrigações que me imponho e que me levam a ignorar a minha intuição, aquela voz que dizia à Alice que não se afastasse da panela?...

Regra número um da culinária: provar e corrigir. Nem sempre acertamos no tempero. Às vezes corre melhor, outras vezes pior. E já sabemos que podemos contar com os outros cozinheiro a meter as suas colheradas. Mas se formos checkando sempre à medida que cozinhamos, podemos ir corrigindo, equilibrando, aproximando-nos do resultado pretendido. 


Eu ando aqui a ver se cozinho o petisco anunciado no título. 

E tu, já sabes o que queres cozinhar?

Convido-te a fazeres uma pausa para te observares enquanto cozinheiro: (Pode ser interessante escreveres agora as respostas e ires observando depois, na prática, se elas se confirmam.)

  • Crias as tuas próprias receitas ou segues as dos outros? 
  • Segues fielmente o que te é indicado ou vais improvisando? 
  • Quando improvisas, sabes qual é a tua intenção ou atiras com o que calha para dentro da panela e logo se vê o que sai? 
  • Se o que sai não tem nada a ver com o que esperavas, como lidas com isso?
  • Como lidas com os imprevistos da cozinha? Adaptas-te ou exasperas?
  • Conheces os cozinheiros com quem partilhas frequentemente a cozinha? 
  • Aprendes com eles ou sentes que só te atrapalham?
  • Para ti, regra geral, cozinhar é ______________ (uma alegria, uma experiência, uma fonte de aprendizagem, um tormento, uma obrigação, um castigo,...).

Deixo-te com a sugestão de um exercício prático:

Escolhe uma das tuas relações (faz uma de cada vez, para poderes focar-te e observar com atenção) e cria para ela um "prato" que defina as coisas mais importantes para ti nessa relação. 

Por exemplo: 
- Casamento alegre coberto de amor com bolinhos de cumplicidade e diálogo em cama de partilhas, regados com paciência e polvilhado de paixão.
- Trabalho criativo recheado de pro-actividade, servido com bom-humor e dedicação, acompanhado de estimulantes desafios.
- Discurso interno sereno mergulhado em afirmações positivas acompanhado de infinitas possibilidades e sonhos ambiciosos, servido em travessa de flexíveis atitudes. 

Escreve-o, e depois: olhos na panela! 
Observa (durante o tempo que definires) quantos dos teus ingredientes estás tu a colocar na relação. Corrige o tempero, sempre que necessário.



Se te sentires perdido, escuta aquela vozinha que te fala. 
Ela saberá o que fazer!








40 & happy



Cá estou nos entas!
4 décadas de mim!
Não me apetece escrever muito, hoje é dia de viver a vida, e não falar sobre ela.
Dia de sentir, fazer, partilhar, ser.

Descobri a o valor da entrega, de me dar, de dar o que tenho para dar, independentemente de reconhecimento ou retorno, tal como o sol nasce todos os dias, mesmo que ninguém esteja acordado para o receber.

Hoje escolho dar-me ao mundo em abraços. 
Faço a minha parte, que o mundo me responda como entender. 
Que eu saiba, como o sol, manter o meu brilho e alegria, independentemente de como o mundo me recebe hoje.

Walk the talk. É hora de walk the talk, e hoje escolho testar-me.


Obrigada a todos os que me abraçam de volta, e obrigada a todos os que escolhem não o fazer.

Obrigada aos meus pais, que já não posso abraçar fisicamente, e que num abraço me deram a coisa mais valiosa da minha vida: a minha Vida.



Abraço-vos a todos!







Até, minha mãe, até





Uma montanha de Nada

Era uma vez dois gémeos.
Quando nasceram, os seus pais deram a cada um uma montanha de moedas de ouro.
Um dia levaram-nos até às duas montanhas e disseram-lhes que aquelas montanhas eram a sua fortuna, e que competia a cada um gerir a sua o melhor que soubesse.
Um dos meninos desde logo pensou em muitas coisas onde iria usar a sua fortuna! O outro, pelo contrário, decidiu que a queria guardar para o futuro, e todos os dias, dia após dia, ele sentava-se no topo da montanha e ficava a contemplá-la.
De vez em quando via o irmão ir a correr buscar um punhado de moedas à sua montanha e desaparecer novamente. Ele não! Não as gastava consigo; não as dava a ninguém - apenas as guardava. Um dia iria aparecer o investimento certo. Um dia ele iria saber dar-lhes o melhor uso possível.
À medida que o tempo passava, parecia-lhe que a sua montanha ía ficando mais pequena, tal como a do seu irmão... mas pensou que era ele que estava a crescer; seria certamente uma questão de perspectiva.
Só quando o menino se transformou em adulto e o seu corpo parou de crescer, ele percebeu que a sua montanha estava de facto a mingar. Em menos de nada já ela estava a menos de meio, tal como a do seu irmão, que continuava a fazer saques regulares. Como podia ser? O que havia de errado com a sua fortuna? Como podia estar a diminuir se ele não a gastava, se não a usava em nada?!
Desconfiando que o estariam a roubar, o homem, agora ex-milionário mas ainda muito rico, já não abandonava a sua montanha nem para dormir, nem para comer - para nada! Isolou-se do mundo, não permitia que ninguém se aproximasse, tornou-se num homem cada vez mais amargo, convencido que todos queriam rapinar-lhe o que conseguissem. A sua vida era agora, apenas e só, dedicada a vigiar a sua montanha que, ainda assim, continuava a diminuir de dia para dia, até que desapareceu por completo diante dos seus olhos incrédulos.
E foi só quando, já homem maduro, ficou sentado no chão, fixado na última moeda do seu tesouro, e a viu entrar pela terra adentro, que ele pôde perceber que por baixo da sua montanha havia uma fenda, pequenina, quase imperceptível, por onde as moedas, muito lentamente, uma a uma, iam escoando, para um buraco sem fundo e sem retorno. A sua fortuna estava para sempre perdida.
Quando o seu irmão veio, em júbilo, buscar o último punhado de moedas que lhe restava, ficou muito surpreendido de o encontrar a chorar.
- Porque choras, meu irmão? Vejo que também conseguiste gastar a tua fortuna!
- Gastar??? - gritou indignado - Eu não gastei nem uma moeda!
- Então, o que lhe aconteceu?
- A terra engoliu-a. - E chorava - Tu que fizeste da tua?
- Ah, bom, eu estudei!
- Estudaste? E esbanjaste assim toda a tua fortuna?
- Bem... começou por aí. Estudei, li muito. Depois quis visitar os sítios sobre os quais tinha lido, e corri o mundo. Depois quis trazer o mundo a quem não o podia conhecer, e tornei-me professor. Ajudei a construir escolas e bibliotecas. Organizei eventos e viagens. Participei em mil aventuras. Fiz amigos. Celebrei com eles muitas coisas. Apaixonei-me por uma mulher fantástica, que me presenteou com dois filhos. Demos a cada um a sua montanha de moedas de ouro. E agora que consegui gastar toda a minha fortuna, com o meu o último punhado de moedas vou fazer uma grande festa com todas as pessoas que estiveram na minha vida por todos estes anos! Queres vir?
Não tinha grande vontade para festas, nem entendia ainda como se podia celebrar o facto de se ter gasto uma fortuna, mas na realidade já não tinha nada para vigiar, e acabou por acompanhar o irmão até à sua festa.
Só quando viu tudo o que o irmão tinha construído, todos os amigos, a família, tantas pessoas que lhe queriam bem, só então, aquele homem amargurado, pobre e vazio, percebeu que quem tinha desbaratado a fortuna afinal... era ele. Toda a sua fortuna estava perdida para sempre, sem que ele a tivesse utilizado em nada, sem que tivesse construído coisa alguma, sem que a tivesse partilhado com alguém, ou usufruído de forma alguma, além de ficar sentado no topo, impassível, a senti-la escoar-se lentamente.
É certo que provavelmente as suas moedas se esgotariam sem que conseguisse fazer tanto como o irmão, já que por baixo da sua montanha havia uma fenda. Ainda assim, pensou, era tanto o que poderia ter feito...


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A minha mãe foi uma pessoa muito especial. Um caso atípico. "Um alien!" - brincávamos tantas vezes. 
Neste conto ela seria, de alguma forma, os dois irmãos. Quem a conheceu bem, sabe que não poderia ser de outra forma. Uma informática que escrevia poemas. Personificação perfeita da bipolaridade, toda a vida foi mulher de extremos, sempre jogou ao Tudo ou Nada.
A primeira parte da sua vida, passou-a a querer usar a sua fortuna com uma sofreguidão desmedida, como se não houvesse amanhã. Amava desmesuradamente. Lutou, escavou, construiu. Casa, família, uma carreira brilhante, um grupo de amigos, um bom punhado de valores que defendia de unhas e dentes, pelos quais lutava, destemida, contra tudo e todos. E foi tal a intensidade com que o fez, tal a voracidade, que um dia... as forças esgotaram-se-lhe, bem antes de conseguir esgotar a sua fortuna. Sentou-se então no alto das suas moedas de ouro (tantas que ainda havia por gastar!) à espera. À espera que o futuro lhe devolvesse a força, à espera de voltar a sentir vontade de sequer olhar para as suas moedas, à espera do momento de voltar a viver. E, por fim, apenas à espera que a última moeda encontrasse o caminho até à fenda e desaparecesse terra adentro.
Há muito que desistira de viver. Sobrevivia. Respirava. A custo.
Divido-me entre a dor da perda e o alívio de a saber melhor - em paz. Conforta-me saber que partiu como queria, sem ter de passar por momentos ainda mais dolorosos e menos dignificantes. Conforta-me saber que passou os últimos dias acompanhada pela família, rodeada de amor, que cumpriu o desejo de estar com os pais e as irmãs, que pôde ainda sorrir com os sobrinhos e sobrinhas-netas. Que no último instante, ainda foi a tempo de conseguir usar as suas últimas moedas de ouro.

E não posso, ou não quero, deixar passar este momento sem me lembrar e sem vos lembrar que o tempo é, de facto, o bem mais precioso que temos. Que o tempo que nos é doado à nascença é o nosso ouro. Que devemos investi-lo com o cuidado de quem investe toda a sua fortuna. Que o devemos valorizar e aproveitar como a dádiva que é, ao invés de o esbanjarmos tão displicentemente, iludidos de que o estamos a guardar, que nos estamos a guardar para algo melhor, que há-de vir, que estamos a guardar a vida para a vivermos mais tarde, quando nos for mais conveniente, quando aparecer o momento que valerá a pena viver,  sempre arrogantemente convencidos que o tempo nunca nos faltará. 
Quero lembrar-me, e lembrar-vos, que paremos de culpar os outros pela nossa falta ou desperdício de tempo: ninguém nos está a roubar a fortuna, somos nós que, levianamente, o relegamos para segundo plano, sem realizarmos que o verdadeiro tesouro não são os bens acumulados, mas os momentos vividos a conquistá-los e a usufrui-los.
Temos tempo... achamos sempre que teremos tempo... mais tarde. Adiamos, protelamos, procrastinamos. Amanha eu faço. Amanhã eu cuido(-me). Amanhã eu amo(-me). Amanhã eu vivo.

A minha mãe esgotou as suas moedas aos 65 anos, o meu pai aos 62. Há quem as veja desaparecer aos 40 - os que farei daqui a uns meses, se me for concedida mais essa graça. Há quem fique sem elas aos 20, aos 10, aos 2...
A minha mãe ía mudar de vida. A minha mãe ía cuidar-se. A minha mãe ía voltar a viver. Já a partir de Janeiro. "Meia-noite! Ano novo, vida nova. Agora é que é. A partir de amanhã..." 
A minha mãe não teve amanhã. Não teve ano novo. Não teve vida nova.  

Desejo fervorosa e humildemente acordar todos os dias com a pergunta "E se hoje fosse o último dia da minha vida?" e adormecer com a resposta "Teria sido um último dia feliz."  


Beijões, gordinha!