Queda Livre



Sem rede.
Sente cada passo. Respira - a cada passo. Sente, intensamente, com todo o corpo, cada pequeno passo. E avança. Avança titubeante na corda que a sustem. E sustem a respiração. Mas avança.
Sempre fora mulher de chão. Da segurança e da solidez do chão.
Odiava alturas e desafiar o vento. Fugia de tudo o que ameaçasse a estabilidade de dois pés bem cravados no solo.
Não sabe o que mudou. Por que artes e engenhos mudou. Magia ou bruxedo, cura ou maleita, milagre ou apocalipse, salvação ou perdição - desconhece em absoluto o que a transformou e o que lhe trará a transformação. Sabe que agora odeia o chão. Aborrece-a. Parece-lhe demasiado pequeno e desinteressante.
Do alto da corda, ainda que rodeada de névoa, alcança o que nunca vira de pés fincados na terra. E respira. Como respira melhor! Sente que cresceu uns bons vinte centímetros, desde que largou o peso que a enterrava no betão, e levitou para aquela corda a perder de vista.
Aqui os passos não são passos, são vitórias. Cada passo é uma conquista. Saboreada. Apreciada. Minuciosamente sentida por cada músculo. Aqui não há espaço para passos em vão. E nesta corda, só cabem os seus pés.
Não sabe onde a levará. Não sabe se ela tem fim. Ou se é para lá que quer ir. Talvez outra corda se cruze com esta mais adiante; e talvez essa outra a atraia. Talvez salte, um dia. Talvez desça tranquilamente; talvez caia abruptamente. Nenhum desses talvez lhe interessam agora. Por ora, avança. Tudo o que sabe, e tudo o que quer saber, é que põe um pé em frente do outro. E respira.
Talvez acabe por cair, em queda livre. Que seja. A tónica não está em "queda", mas em "livre".
Sem rede. E avança. Já não sabe caminhar no chão.